Dominando a antiga vila de Colares, no caminho que nos leva á celebrada capela da Peninha, encontra-se o logar do Penedo, cujo nome certamente derivou do aglomerado de rochas sobre que se erguem as casas de seus moradores. Ahi, no cimo de um cabeço, limitado de um lado pelo vale da ribeira que passa á «Bôca da Mata», d’onde trepam as calçadas que de Colares vão ao povoado, e do lado oposto pela «ribeira do Valente», depara-se com a capela de Nossa Senhora das Mercês, que mais vulgarmente é conhecida pela invocação de Santo António.
A capela, batida dos ventos, está isolada sobre um eirado, onde, fronteiro ao poetico cruzeiro, visinhando com a fonte do logar, se cleva um banalíssimo, anti-estetico coreto, monumento que abriga em dias de festa a philarmonica empenhachada e rutilante de galões que veiu substituir com as «polkas de passarinho» e as selecções d’operas, o antigo e tipico 2 de infantaria, ou seja o gaiteiro e seu ajudante, o trameléque, eximio rufador e solista de tambor.
O interior da capela é todo forrado de azulejos policromicos, de varios tipos e padrões, com sete painéis alusivos á vida de Santo Antonio, ali mandados colocar por devoção de Francisco Nunes Dias, que em 1647 retomou a antiga capela.
Lembro-me, com saudades, e já lá vão mais de 20 annos, do cerimonial das festas que pelo Espirito Santo se celebravam no Penedo.
Faziam-se a recepção e coroação do imperador com uma pragmatica especial, mixto pitoresco de christianismo e paganismo, que datava de muitos seculos.
N’um livro de obitos do seculo XVII, pertencente ao antigo cartorio de Colares, consta que se finara «Antonio, da ribeira do Valente, que no anno fora Imperador».
Ter um imperador na família era uma honra disputada por todos os habitantes do Penedo e, quando o imperio pertencia a uma das mais abastadas familias, não se olhava a despezas. Até os Stocklers, ascendentes do general Garção Stockler, foram imperadores. Existe ainda a coroa grande, de prata dourada, com restos de joias ao gosto da epoca, que a «Casa do Alto» mandou fazer para o seu imperio.
O imperador, que primitivamente era homem feito, foi com os tempos diminuindo na idade. No meu tempo era um garoto dos seus treze anos.
Dois festeiros iam buscar o imperador ao palacio, que as mais das vezes não passava de pobrissima habitação, adornada vistosamente para esse acto. Em frente dela ficava depois levantado, pelo ano fora, um mastro encimado por uma bandeirola de folha recortada em feitio de pomba
Acompanhado do sequito, que se conpunha do Condestavel e de um pagem, dos mordomos e muito povo, era esperado no portico da Capela pelo padre celebrante, de pobrepeliz e capa de asperges.
Era este, no tempo a que me refiro, o meu velho amigo padre Matias de Campo, coadjutor de Colares, um hespanhol de Astorga, emigrado de carlista que, em 1874, fugira para Portugal.
Estou a vêl-o, tirando a corôa de uma salva de prata e colocando- a com toda a unção na cabeça de um imperador, cabeça ornada de alourada cabelleira de estôpa, e de um gôrro emplumado, complementos da indumentaria com que o guarda-roupa de Lisboa, fornecedor habitual da corte imperial enfarpelava de nobre no tempo de Henrique III, o rapazola que ligurava de imperador.
Ao som do hymno, tocado e rufado pelo gaiteiro e tambor, o padre entregava-lhe ainda o sceptro e, findas as cerimonias da recepção, o soberano, envolto no seu manto, tamava logar no trôno, junto do altar-mór, onde, rodeado pela côrte, ouvia a ladainha e a missa de instrumental.
A seguir, o sacerdote, com graves mesuras, pedia venia para o sermão. Póde fazer-se ideia do que seria um sermão prégado pelo padre Matias, profundo conhecedor do grego e do latim, mas que apezar de 30 annos passados em Portugal não conseguira desfazer-se ainda da sua pronuncia natal…
O imperador só se erguia quando ao «levantar a Deus». O calor apertava e as môscas incommodavam a Sua Magestade; então o pagem, com um abano, enxotava as impertinentes, que ameaçavam desfazer a ordenada compostura do pobre figurante.
Com o mesmo cerimonial sahia o imperador da capela, sendo deposto no dia seguinte, e eleito o sucessor que logo esportulava determinada quantia.
Depois da festa de egreja realisava-se o bôdo.
Já na vespera andára, enfeitado de flores e fitas, pelas ruas do Penedo, cheias de colgaduras, o boi que devia ser morto para alimentar a voracidade de não sei quantos mendigos que, de quatro leguas ao redor, acorriam á festa.
Passeava a «victima» pela povoação, com os mordomos, gaiteiro e ajudante, bandeira e foguetes, e a sua primeira visita era ante a casa do imperador, para fazer a venia.
Era também costume velho darem-se n’esse dia dotes de 2 pintos presos, ou sejam 960 réis, ás raparigas do logar que haviam casado no anno.
O boi era repartido, post-mortem, já se vê, em duas partes: uma para a côrte imperial e outra para os pobres.
Dadas tres voltas á roda da capella, depois de benzido, matavase o animal. Caso grave este da matança. Uma vez, tendo o magaréfe errado o golpe, fugira o animal, e só fora agarrado perto de Cintra, pelos forasteiros esfomeados e mais povo, armados de forcados e foices! Cozinhada a carne perto da capella, n’um caldeirão de cobre que ainda ali existe, era distribuida aos pobres, sentados em bancadas, juntando-se a eles os devotos que tinham feito promessa de comerem com os irmãozinhos.
Servia n’essa ocasião uma louça especial, a baixella, constituida por pratos e tijelas, com a imagem do Espirito Santo (a simbolica pomba), desenhada no fundo. Esta louça, de faiança bastante grosseira, com esmalte branco-sujo, as cercaduras e emblemas de azul ou côr de vinho, considero-a de fabrico de Lisboa, do principio do seculo XVIII.
Arrumada em cestos n’uma dependência da sacristia, a baixella foi-se escaqueirando pouco a pouco, existindo hoje ali apenas dois ou tres exemplares, junto das tijelas e pratos de barro que foram substituindo a primitiva louça.
O Imperio acabou… Hoje, democratisado, o imperador passou a ser Juiz, a festa faz-se sem as pragmaticas antigas, e o boi come-se… sem ser benzido.
Do antigo Imperio restam somente a corôa e o sceptro, guardados no fundo de um arcaz, uns cacos, parte dos quaes eu conservo preciosamente, e a lembrança de um velho costume que ficará, durante seculos ainda, na alma do povo do Penedo (1).
(1) No Penedo só se coroava o «imperador»; nas Mercês, proximo de Rio de Mouro, coroava-se também uma «imperatriz». Estas festas do Imperio que, parece, foram instituidas por D. Dinis e sua mulher, «a Rainha Santa» e se celebraram pela primeira vez em Alenquer, realizavam-se também emAlcabideche, perto de Cascaes, em Elras, junto de Coimbra, e celebram-se ainda nas Ilhas.