Semanário Regionalista Independente
Sexta-feira Março 29th 2024

“CANTA, AMIGO, CANTA” E A LONGA CAMINHADA DE AUTORES-INTÉRPRETES ATÉ AO 25 DE ABRIL

José Jorge Letria

Ao longo de quase 240 páginas profusamente ilustradas, João Carlos Callixto, um homem da comunicação radiofónica e televisiva contou a história de 14 anos da nova canção portuguesa, cobrindo o período compreendido entre 1960 e 1974. Foi um trabalho exaustivo e abrangente que não excluiu nada nem ninguém desse ciclo de criatividade e interpretação que viria a lançar as bases da produção musical portuguesa das décadas seguintes. “Canta, Amigo, Canta-Uma Nova Canção Portuguesa(1960-1974)”(Âncora Editora) é uma viagem longa e com muitas escalas que vai da aventura do pop/rock, aos cantores de festivais RTP da Canção, passando pelos nomes que lançariam , com eficácia e originalidade, a canção de intervenção ou canto político, elemento central na consciencialização de muitos milhares de pessoas, em Portugal, nas frentes africanas da Guerra Colonial e no exílio, para a urgência de se derrubar o regime opressor de Salazar/Caetano.
O autor, actualmente com o programa “Passado ao Presente”, na RDP Internacional, passou por vários trabalhos recentes, dos quais destaco o livro “Na Terra dos Sonhos”, dedicado à obra de Jorge Palma, um dos maiores criadores de sempre da canção portuguesa.
Os 14 anos escolhidos para este trabalho de investigação começam no ano em que José Afonso deu os primeiros sinais de ruptura e de mudança na música portuguesa com a sua “Balada de Outono” e vão até ao ano em que, derrubado o regime, a música criada e interpretada em Portugal abriu as portas do futuro, já com liberdade e democracia. Foram também, no essencial, os anos da Guerra Colonial, que se prolongou de 1961 até 1974, com quase 10 mil mortos nas tropas portuguesas e mais de um milhão de homens em Angola, Guiné e Moçambique, mas também no exílio que refractários e desertores escolheram como alternativa a uma guerra em que não acreditavam e em que se recusavam a participar.
Das muitas dezenas de autores, intérpretes e obras seleccionados, a maioria não deu, por motivos vários, continuidade à sua carreira, designadamente porque a conclusão de licenciaturas e o início de actividades profissionais consistentes os afastaram dos palcos e dos estúdios. Mas outros continuaram e em muitos casos fizeram história e deixaram marca e memória.
O título do livro foi tomado de empréstimo à canção “Erguer a Voz e Cantar”, de António Macedo, cujo refrão repetia justamente o verso “Canta canta, amigo,
canta”, o que fez dela uma das canções de referência da crise académica de 1969 e uma das mais cantadas até 25 de Abril de 1974. António Macedo, licenciado pela Faculdade de Letras de Lisboa, foi cooperador na África lusófona, foi actor antes de Abril no Teatro Experimental de Cascais e morreu prematuramente, deixando inédita uma boa parte da poesia que escreveu à margem das canções. Conheci-o bem, trabalhámos juntos e fomos amigos.
E não falta ninguém neste inventário rigoroso, de José Afonso a Luís Cília, de Denis Cintra a Ana Maria Teodósio, de José Barata Moura a Paulo de Carvalho, sem hierarquias nem preconceitos, sem fronteiras ou outras linhas de demarcação, demonstrando que o longo caminho percorrido foi de encontros e desencontros, de descobertas e desaires, de alegrias e tristezas, sempre com o crivo da censura apertado sobre os autores-intérpretes e sobre o que faziam nos estúdios e nos palcos. E acrescente-se, porque tal não chegou a ser dito, que esta foi uma quase década e meia em que, contrariamente ao que era regra na música portuguesa, se afirmaram os intérpretes que também eram autores, marcando um novo ciclo, uma nova etapa, um tempo novo. O que mais tarde viria a ser feito foi o fruto dessa busca e daquilo que me permitiu alcançar. O que depois se fizer sobre esta época deverá ter este inventário largo e abrangente como ponto de partida. Para João Carlos Callixto vai o aplauso pela obra feita e a expectativa em relação a novos projectos com idêntica ambição.

Crónica publicada no Jornal de Sintra, edição n.º 2044/2045 de 17 de Outubro de 2014.

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