Semanário Regionalista Independente
Terça-feira Setembro 23rd 2025

UMA EUROPA DOENTE NÃO PODE IGNORAR OS HUMILHADOS E OFENDIDOS

José Jorge Letria

Por vezes a Europa sediada em Bruxelas, designadamente a do Eurogrupo, aparenta melhoras, mas depressa dá sinais de agravamento galopante, o que, no plano da sintomatologia, pode mesmo colocar em causa a Zona Euro e o nosso futuro colectivo, confirmando o poder dos directórios que põem e dispõem em matéria financeira.
O que se tem estado a passar com Chipre é disso um clamoroso exemplo. Há uma Europa dos ricos e dos poderosos, liderada pela merkeliana Alemanha que leva a reboque os “bons alunos” do ultraliberalismo, como é o caso de Portugal, e puxa a corda da guilhotina quando os seus interesses são minimamente beliscados.
A decisão do Eurogrupo em relação a Chipre foi, como muito bem salientou o Presidente Cavaco Silva, numa das suas mais certeiras intervenções, muito perigosa e de uma enorme insensatez. A Europa de Durão Barroso e dos outros líderes comunitários não se está a dar conta do que pode estar no horizonte e que poderá passar por uma revolta generalizada dos pobres e dos humilhados, sendo que, entre os humilhados, se contam aqueles que vêem as suas poupanças a serem “roubadas” pelos “cobradores de impostos” do “sheriff de Nottingham”, que teve em Robin dos Bosques o mais persistente e eficaz opositor.
Na realidade, isto assim não vai poder continuar, como muito bem afirmou Diogo Freitas do Amaral, na apresentação da biografia de Mário Soares escrita pelo jornalista Joaquim Vieira. Como o antigo líder do CDS sublinhou, estamos a viver uma situação que faz lembrar a Europa anterior à Revolução Francesa, em que os camponeses eram violentamente explorados e humilhados pela nobreza e pelo clero. E depois foi aquilo que se viu, e que ninguém esperasse que as cabeças dos responsáveis ( e infelizmente muitas outras) fossem poupadas.
Há uma Europa que vota, que trabalha, quer ter garantias quanto ao futuro dos seus filhos e está a ficar saturada, manifestando-se de forma veemente, mesmo em Bruxelas, onde as autoridades optam pela proibição de actos de protesto, por considerarem que não estão em condições de garantir as mínimas condições de segurança. É muito mau sinal que assim seja, tanto a proibição, como o reconhecimento de que já não conseguem garantir a segurança das instituições. Mas tarde ou mais cedo, algo de muito sério pode vir a acontecer e, acantonados nos “bunkers” do seu poder majestático, os responsáveis ainda não foram capazes de antecipar os cenários possíveis. E alguns até têm no seu horizonte político de curto e médio prazo candidaturas presidenciais nos seus países de origem…
A respeito desta Europa, e sobretudo do papel que a Alemanha de Merkel nela está a desempenha, escreveu o sociólogo Ulrich Beck, consagrado autor da obra “A Sociedade de Risco”, o livro “A Europa Alemã-de Maquiavel a “Merkievel”-Estratégias de Poder na Crise do Euro” (Ed. 70).
Professor em Harvard, Munique e na London School of Economics, Ulrich Beck nasceu na Alemanha em 1944 e é um opositor declarado do conceito de uma “Europa Alemã”, contra cujo risco já o grande escritor Thomas Mann, Nobel da Literatura, exilado durante a Segunda Guerra Mundial nos Estados Unidos, alertou de forma categórica em 1953, pedindo aos seus compatriotas que nunca mais voltassem “a aspirar a uma Europa alemã”. Mas a verdade é que essa Europa é a que hoje existe e impõe as suas regras, mesmo sem precisar da “Luftwaffe”, da “blitzkrieg” ou das divisões “panzer”, bastando-lhe apenas o poder económico-financeiro e a envergonhante subserviência de governos como o português de Passos Coelho e Vítor Gaspar, mas também do ideólogo António Borges, homem do FMI e do pior que todas as Goldman Sachs desta vida representam de aviltante e destrutivo para as soberanias nacionais e para a dignidade dos povos.
Depois de advertir para os perigos resultantes desta humilhante “Europa alemã” que pode tornar-se responsável, no limite, pela morte do euro e do próprio projecto europeu, Ulrich Beck realça a urgência de um contrato social europeu, que garanta mais liberdade, mais segurança social e mais democracia em toda a Europa, sem acirrar ódio e agudizar antigas clivagens entre Norte e Sul e entre ricos e pobres ou pequenos e grandes. Também os pequenos de França, humilhados por Luís XVI, ganharam força bastante para tomarem a Bastilha de assalto. E o resto foi o que a História registou. Quando os “sans-coulotte” deixam de ter pão para dar aos filhos e dinheiro para comprar medicamentos e para manter um mínimo de dignidade, não costumam ficar-se pelas palavras de ordem e pelos cartazes caricaturais. Mário Soares e até figuras da Igreja Católica têm vindo a alertar para esse perigo, e agora até figuras de referência do PSD (António Capucho e ângelo Correia, entre outros) exigem uma urgente remodelação do governo. Outros há que reclamam a sua inadiável queda. Com ou sem o cenário cipriota no horizonte, é imperioso que se actue, que não haja resignação e silêncio acomodado. Portugal é dos pontos fracos de uma Europa que, envelhecida, descrente e sem força, pode vir a desagregar-se, porque, como muito bem lembrou Jean Claude Junker, os demónios antigos estão apenas adormecidos.

Crónica publicada no Jornal de Sintra, ed. 3973 de 22 de março de 2013

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