Semanário Regionalista Independente
Terça-feira Abril 30th 2024

Cães e outros bichos

Cães e outros bichos

Sérgio Luís de Carvalho

Na Avenida Gomes Pereira, em Lisboa, há a discreta estátua de uma menina com um cão à ilharga. Diz-se que a estátua foi erigida há muitos anos por um pai grato que assim homenageou o cão que salvara a sua filha de uma morte certa. Não sei, nem isso me rala, a história toda; nem sei se a essa história é mito ou realidade. Sei, porém, que se a verdade ficar aquém do mito, prefiro o mito.
Na década de 60, quando era miúdo e ia, com a minha mãe, praticar ginástica à velhinha sede do Benfica no fundo dessa rua, não havia dia que não ficasse embasbacado mirando essa singela estátua enquanto esperava o autocarro, desejando secretamente que também eu, um dia, tivesse um cão. O tempo passou e ainda hoje recordo essa estátua como a mais bonita de Lisboa, e ainda hoje a miro e remiro quando por ali passo. E ainda hoje, aliás, se me parte o coração ao ver os cães perdidos e abandonados e maltratados que povoam tantas ruas das nossas cidades, numa compaixão algo infantil que, mesmo assim, penso ser a parte mais adulta do meu caráter.
Se quisesse justificar isto, poderia dizer que a compaixão pelos animais é o primeiro passo para se ser compassivo com as pessoas; poderia dizer que só quem ama os bichos é capaz de amar os seres humanos; poderia dizer que todos nós, homens e bichos, fazemos parte do mesmo mundo; poderia dizer que temos para com os animais e para com a natureza um dever de cuidado e de carinho que a nosso favor, inevitavelmente, reverterá. Poderia dizer tudo isso, mas no fundo não vale a pena. Tal como quem sabe não fala, também quem ama sabe. E, neste caso, sabe o que significa em termos humanos amar os animais.
Seria fácil repisar aqui a sábia frase de Ghandi que assegura que o grau de civilidade de um povo se vê pela forma como os seus animais são tratados. Não só pela sageza e pela verdade destas palavras, como pela autoridade moral do seu autor. Não creio, todavia, que isso seja preciso. O amor não se justifica; sente-se e pratica-se e vale por si mesmo.
Em 1987 foi realizado um filme chamado “Dear America: letters home from Vietnam”. O filme consta apenas de imagens e músicas da época da guerra, entrecortado por excertos de cartas de soldados para os seus familiares e de excertos de cartas de parentes para os seus filhos em combate. A derradeira carta é de uma mãe que nos fala da imensa dor da perda. E todavia, para além da dor, essa carta fala-nos também da felicidade de ter tido a quem amar, ainda que depois tenhamos perdido o amado objeto desse amor. Um dia os meus cães morrerão. Nesse dia serei mais rico por os ter tido, ainda que fatalmente saiba que irei sofrer pela sua perda.
Talvez o início da sageza seja isso mesmo: aceitar. Aceitar que todos somos um só, independentemente de nos sabermos diferentes. Aceitar que o nosso destino comum está expresso numa simples e modesta estátua da Avenida Gomes Pereira, em Lisboa, defronte da qual passam autocarros e pessoas e bichos e miúdos que ainda se embasbacam para o cão e para a sua pequena dona que o animal, um dia, terá salvado. Aceitar, enfim, que a compaixão para com os bichos e para com os homens nos torna necessariamente mais humanos. E isso basta.

Crónica publicada no Jornal de Sintra, página 7, da edição n.º 3931 de 13 de Abril de 2012

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