Semanário Regionalista Independente
Terça-feira Abril 23rd 2024

“BBC – As Crónicas de TV”

Crimes para todos os gostos

Bernardo de Brito e Cunha

NÃO É A PRIMEIRA vez que reparo que a caixa escrita há 10 anos, que vem no fim desta crónica, por vezes coincide com fatores da atualidade. É o caso de hoje, em que essa caixa refere a nossa presença num campeonato do mundo de futebol. E agora que a seleção já partiu para a Polónia, para o Europeu, há ali coisas de há 10 anos que continuam imutáveis: basta ver como já naquela altura o governo dizia que o país precisava de trabalhar e produzir… E isso levou-nos onde? À beira do abismo, como diria a anedota – e agora só nos falta dar o passo em frente… Ou, dito de outra maneira: só nos falta que os bancos comecem a fazer testes às máquinas de Multibanco (como acontece na Grécia) para saber que medidas de notas elas aguentam. Na Grécia, já com vista ao dracma: e por cá, seria que voltariam os escudos? Eu mudava-lhe o nome: qualquer coisa como “o milrei”.

E SE HÁ 10 anos já se pedia que se trabalhasse e produzisse (e naturalmente que se exportasse) a situação hoje continua a ser a mesma – com a diferença de que há 10 anos não devíamos ainda tanto. E no entanto, não posso deixar de ficar de boca aberta perante o grande evento televisivo dos dois últimos fins de semana. Foi o Rock in Rio – Lisboa e foi transmitido, praticamente na íntegra, pela SIC Radical. Aquilo que me surpreende não é isso: o Rock in Rio – Lisboa já teve diversas edições e foi sempre transmitido pela SIC Radical. O que me deixa estupefacto são os números: os bilhetes não são baratos, mas não houve noite em que os grandes nomes presentes tivessem menos de 80 mil espetadores. E citando o título de um álbum de um grupo musical que, por desmembramento progressivo, não esteve neste festival, os Supertramp, só me resta perguntar: “Crise? Que crise?” Ou, de outra maneira: que espécie de pessoas (ou de estrato social) teve capacidade para ir, todas aquelas noites, a 60 ou 70 euros, até ao Parque da Belavista? Creio que não terão sido funcionários públicos ou reformados, nem sequer a respetiva descendência…

PUS A GRAVAR, para mais tarde recordar (ou, menos poeticamente, ver) uma série que passa no cabo – naturalmente. Chama-se “Midsomer Murders” e está no ar desde 1997, o que já faz uns anitos: cá vai já na 7.ª temporada, imagine-se. Um dia destes, aproveitando a tristeza tradicional dos canais nacionais, decidi ir ver o que tinha gravado. Para minha surpresa, esse primeiro episódio parecia não ter fim e até pensei que devia estar a fazer confusão. Mas não: quando fui confirmar a duração, lá estava: 104 minutos. Achei que era coisa que não se usava em séries: se formos a ver, há filmes bem mais curtos. É uma série policial, como se percebe pelo seu título, e se tivesse os 45 minutos que são habituais numa série, os romances de Caroline Graham não poderiam resultar tão bem. Midsomer é um condado inglês completamente ficcionado, cuja cidade principal é Causton: é aí que trabalha o inspetor Barnaby, a quem já conheci dois ajudantes diferentes e que não devem ficar por aí. O mais recente, ao terceiro episódio, fez a pergunta que eu próprio já me fizera: não é estranho este crescimento exponencial da criminalidade na região? Ao que Barnaby respondeu “Já levantaram essa questão…” Com efeito, em “Midsomer Murders” não acontece como nas outras séries: um crimezito e já está. Não: ali os crimes são aos dois, aos três e – imagine-se! – até mesmo quatro, como já vi… Mas a série, que é inglesa… é boa, naturalmente.

HÁ 10 ANOS ESCREVIA

«Há coisas que até são fáceis de entender. Como, por exemplo, o facto de um país – estou a falar de nós, claro, mas também de outros – se levantar de madrugada para acompanhar um jogo de futebol. Ou, em alternativa, de um país parar durante horas para acompanhar esse jogo. Bem se viu o que foi a loucura quase generalizada quando o Sporting conquistou o campeonato e, depois, a Taça de Portugal. Foi um fartote, uma noite em grande, com tudo o que estava ao alcance dos participantes nos festejos. Agora é diferente, claro, que o desígnio é ainda mais nacional: e não me custa a imaginar um país parado durante duas horas e, já que parou até ao meio-dia, caramba!, a coisa arrasta-se até à hora do almoço, que convém sempre discutir esta ou aquela decisão do árbitro.
Como se sabe, esta série de “tolerâncias de ponto” não são oficiais: mas quantos aparelhos de televisão, em quantos escritórios, farão paralisar o país? E, tirando aqueles que marcaram férias para não perderem mesmo pitada, quantos outros irão perder manhãs agarrados ao aparelho de televisão? E o país, que segundo o governo, tanto precisa de trabalhar e produzir, está em condições de aguentar uma “greve de braços no ar”, a aclamar os golos, como esta? Tenho dúvidas.»

(Este bloco respeita a grafia em uso no ano em que foi escrito.)

Crónica publicada no Jornal de Sintra, página 15 da edição n.º 3939 de 8 de Junho de 2012

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