A enorme sem-vergonhice de um português
Bernardo de Brito e Cunha
Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, afirmou que “as personalidades condecoradas por vários presidentes” têm “responsabilidades acrescidas perante a comunidade”, referindo-se ao facto de o empresário ter sido várias vezes condecorado por Belém. “É assim com todos os portugueses, mas sobretudo com quem tem destaque na sociedade. Quanto maior o relevo, maior a responsabilidade. É preciso ser respeitoso. E isso significa tratar as instituições com decoro”; “País está chocado com desplante de Berardo”, afirmou António Costa; a audição de Joe Berardo foi “um momento lamentável e inqualificável”, disse Marques Mendes; já a coordenadora do Bloco de Esquerda afirmou que “Há uns anos, os partidos riam-se do que dizíamos”, destacou Catarina Martins, acrescentando que, “agora que Joe Berardo veio ao Parlamento rir-se dos portugueses, todos ficaram sem vontade de rir”.
Joe Berardo foi na tarde de sexta-feira ao Parlamento para prestar declarações sobre os créditos que criaram imparidades de vários milhões na Caixa Geral de Depósitos, mas colocou várias condições para falar com os deputados. O comendador recusou falar à porta aberta sobre os créditos que pediu à Caixa Geral de Depósitos (CGD). Contudo, na sua declaração inicial, lida pelo seu advogado André Luís Gomes, recusou ter participado em qualquer “assalto figurado ao poder no BCP”. Assim que chegou, ficaram claras as dificuldades que os deputados iriam ter naquela audição: Joe Berardo pediu para que as declarações aos deputados não fossem filmadas, exigindo o direito de reserva da imagem. Apenas parte foi concedido: as televisões tiveram de sair, mas a audição continuaria a ser gravada e emitida pelo Canal Parlamento. Além disso, foi o seu advogado André Luís Gomes quem leu uma declaração inicial, uma vez que Berardo é disléxico.
Nessa declaração inicial, Berardo, pela voz do advogado, note-se, disse que não falaria dos créditos sem ser à porta fechada, uma vez que decorre em tribunal um processo contra si, movido por vários bancos. “Estou certo que esta comissão não se pretende substituir aos tribunais.” Nessa mesma declaração, respondia às notícias de que apenas tem em seu nome uma garagem no Funchal. “Fizeram crer aos senhores jornalistas que só tinha em meu nome uma garagem, pois grato ficaria que os bancos aceitassem ficar com essa garagem no Funchal em troca de todos os activos que lhes fui entregando pessoalmente e de boa-fé em garantias de dívidas de instituições que represento, numa altura em que foi essencial no sistema bancário nacional que as dívidas não entrassem em incumprimento em virtude da situação dos mercados financeiros e da fragilidade do sistema financeiro português”, afirmou.
Mais tarde, sobre o crédito que lhe foi concedido para comprar acções do BCP, Berardo, já de viva voz, garantiu que “foi a CGD que propôs o negócio” através de Cabral dos Santos, então director da CGD. Berardo respondia ao deputado do PSD Virgílio Macedo. Ao social-democrata o comendador referiu: “Tentei ajudar a situação dos bancos [quando estes estavam em crise].” Este foi um dos pontos abordados pelos deputados na audição, com Berardo a especificar que o seu primeiro empréstimo na CGD foi para comprar, essencialmente, acções do BCP. Contudo, acabou por referir que ouviu “zunzuns” de que a Caixa estaria a financiar acções do BCP detidas pela própria Caixa através da Metalgest, a empresa de Berardo. Os seus interlocutores, disse, foram Filipe Pinhal e Peter Ferraz pelo lado do BCP e Cabral dos Santos pelo lado da CGD.
Quem arranjou uma forma notável de gozar com tudo isto foi Ricardo Araújo Pereira – que arranjou formas incríveis de escolher muito melhores adjectivos do que Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa, Catarina Martins ou Luís Marques Mendes. Não só incríveis: como não queria vir a ser processado por Joe Berardo (que deve estar a precisar de umas massas) mas extremamente inteligentes e dissimuladas. Se Berardo parece poder ser definido por uma palavra começada por “v” e acabada em “a”, Ricardo Araújo Pereira fez isso de uma maneira muito mais inventiva, certeira e crua. Dando a entender os nomes que os animais têm. Ou deviam ter.
HÁ DEZ ANOS ESCREVIA
«Mais recentemente, em Junho de 2008, os ministros do Trabalho da União Europeia, sob uma proposta que se não estou em erro partiu da Eslovénia, aprovaram uma directiva que permitiria o alargamento das horas de trabalho semanais para as 65. Apesar do voto contra da Grécia e da Espanha (o nosso querido Portugal absteve-se…), a directiva acabou por ser aprovada por uma maioria qualificada. Era um retrocesso. Mas em Dezembro do ano passado, o Parlamento Europeu repôs, por uma esmagadora maioria, o limite das 48 horas semanais.»
(Esta crónica, por desejo expresso do seu autor, não respeita o novo Acordo Ortográfico.)
Crónica publicada no Jornal de Sintra, ed. 4259 de 17 de maio de 2019